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A morte do Guardião-General do Reinado do Rosário e a despedida com passagem do Bastão

Publicado em 05/03/2022 - 09:35 Por Jeremias Brasileiro
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Créditos da imagem: Jeremias Brasileiro

Era uma tarde em que o sol teimava em não se esconder por detrás do morro do pião. O General-Guardião do Reinado do Rosário estava morto. Por sobre sua urna funerária repousava o Bastão, o Bastão Maria Preta que o acompanhara por mais de quarenta anos. Aquele Bastão transportava história, memória viva de reinado congo, era um Bastão muito bonito, do tempo dos velhos da linha d’angola.

Sai o cortejo fúnebre, e, junto ao caixão segue o Bastão Maria Preta, vai devagar como em procissão, é necessário passar na Igrejinha do Rosário para que ocorra o último adeus ao Guardião-General. Após o cerimonial de corpo presente, o cortejo segue da Igrejinha do Rosário em direção ao cemitério quase que em rito procissional.

Pelas ruas da cidade há comércios que descem as portas em sinal de respeito, janelas de casas fechadas, nas esquinas, pessoas fazem o “nome do pai” como ritual de adeus ao Guardião-General. Gungas de moçambiques tilintam seus sinos chorosos, tamborins e caixa-congo ressoam seus lamentos conforme o caminhar do cortejo, quase a chegar ao cemitério.

Antes de se adentrar ao portão do cemitério, canta-se para aquele que outrora fora o Comandante Geral do Reinado do Rosário, o Guardião-General. Ao chegar à sepultura, após a descida da urna funerária, ocorre um desdobrar cerimonial da passagem do Bastão que ainda se encontrava sobre o caixão.

Dois capitães – um de congo e outro de moçambique – se ajoelham e lamentam em cantorias, a morte do Guardião-General, e, com suas mãos, chegam ao fundo da sepultura. Entoando outras ladainhas, erguem o Bastão que retorna à vida e logo em seguida, entregue ao sucessor do Guardião-General do Reinado do Rosário que viajara para o òrún.

Sete fatias da espada de são Jorge, sete raminhos de alecrim e mais sete folhinhas de arruda molhadas em sete sementes de coités. Uma das últimas benzedeiras da cidade, se utiliza dessa complexa mistura de elementos rituais, para consagrar a nova vida do bastão.

E o cerimonial de passagem chega ao seu ápice ritual permeado de simbologias: um desfile com grupos de congados da região, anunciam a celebração de transferência do bastão com a devida consagração dos capitães durante missa campal realizada na Igrejinha do Rosário.

Mais tarde, ao anoitecer, um grupo de moçambique da cidade de Uberaba realiza entre os dois mastros erguidos de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, o “ritual do banzo” em que outra série de elementos são utilizados, como peneira, jatobás, ervas, ramos, sementes diversas e guias, para saldar e benzer o bastão sob a responsabilidade do novo General-Guardião ou Comandante do Reinado do Rosário.

Um novo ciclo começa, uma nova história floresce e o reinado do rosário tenta se reerguer, tenta sobreviver, no Alto Paranaíba, na serra da mata da corda, na serra do espinhaço, na cidade de Rio Paranaíba. O Bastão Maria Preta, ancestralizado, benzido, fechado, continua sua missão congadeira iniciada a muitas décadas e quiçá há de chegar a um centenário de fé, cultura e resistência afro-brasileira nas congadas de Minas Gerais.



Tags: Cultura, congado, tradição, memoria, gerações
 Jeremias Brasileiro Jeremias Brasileiro
Crônicas e Ensaios das Gerais

Doutor em História Social pela Universidade federal de Uberlândia. É Comandante Geral da Festa da Congada da cidade de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, desde o ano de 2005 e presidente da Irmandade do Reinado do Rosário de Rio Paranaíba, Alto Paranaíba, Minas Gerais, desde o ano de 2011. Desenvolve pesquisas sobre cultura afro-brasileira e sua diversidade nas Congadas de Minas Gerais, associando-as com o contexto educacional, em uma perspectiva epistemológica congadeira, de ancestralidade africana. Um intelectual afro-brasileiro reconhecido na obra de Eduardo de Oliveira: Quem é quem na negritude Brasileira (Ministério da Justiça, 1998), que lista biografias de 500 personalidades negras no Brasil; e na obra de Nei Lopes: Dicionário Literário afro-brasileiro (Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2011). Detentor de um dos maiores acervos digitais sobre as Congadas de Minas Gerais, constituído desde a década de 1980, historiador com vasta experiência e produção cientifica sobre ritualidades, simbologias, coexistências culturais e religiosas em oposição ao conceito de sincretismo. Escritor, poeta, possui textos de dramaturgia, crônicas, literatura afro-brasileira.

Leia também: Sincretismo não! Coexistência cultural e religiosa, sim. Parte 1